sábado, 27 de fevereiro de 2016



Comportamento

A praça pública das redes sociais: caso no Recife expõe comportamento perigoso


Situações de julgamento como a que ocorreu no Recife são muito comuns (imagem ilustrativa) / Foto: Edmar Melo/Acervo JC Imagem
Situações de julgamento como a que ocorreu no Recife são muito comuns (imagem ilustrativa)Foto: Edmar Melo/Acervo JC Imagem
Olhares de reprovação nunca foram empecilho para a jornalista Kiki Marinho proporcionar ao seu filho Renato, 7 anos, atividades comuns às crianças da sua idade. Renato possui um comprometimento comportamental chamado de Transtorno Opositor Desafiador (TOD), além de outras limitações associadas a uma paralisia cerebral. ​Devido à doença, a criança tem crises de agressividade, sudorese e choro compulsivo – muitas vezes em locais públicos, o que às vezes torna “os passeios complicados”, como define a própria mãe.
Na última sexta-feira (19), Kiki resolveu levar o filho para brincar em uma piscina de bolas em um shopping do Recife. Renato teve mais uma crise e começou a gritar e chorar compulsivamente. A mãe precisou agir com firmeza e seu comportamento foi interpretado como violento por alguns clientes do shopping. Com celulares em punho​,​ as pessoas a acusaram de tentar espancar o filho e ameaçaram postar a sua foto no Facebook. Os vários hematomas que Renato t​e​m no corpo, provocados pelas constantes quedas que sofre devido ao transtorno, eram apontados por “dedos acusadores” como prova do crime.
Segundo a jornalista, um senhor teria tentado agredi-la fisicamente. Kiki tentou explicar a situação, mas seus argumentos foram em vão em meio à confusão, que só terminou com a chegada dos seguranças. Ela desabafou sobre o ocorrido em sua página pessoal no Facebook. A publicação, postada como pública, já tem mais de 1.800 compartilhamentos (leia a íntegra aqui).
“Não gosto de expor o meu filho, mas diante de tantas ameaças resolvi compartilhar o que aconteceu. Muitas pessoas se acham detentoras da moral e da justiça, com seus celulares e contas nas redes sociais. Ainda estou me recuperando de tudo que aconteceu, mas temo os traumas que isso pode ter provocado em mim e na minha família. Hoje meu filho perguntou se eu seria presa, porque ouviu isso das pessoas que estavam no shopping. Minha mãe de 85 anos, que estava comigo e presenciou tudo aquilo, sofreu muito e não conseguiu dormir naquele dia”, lembra a jornalista. Ela também disse que ficou surpresa com a repercussão do caso nas redes soci​ai​s. “Recebi mensagens de apoio de todo o Brasil e relatos de mães que passaram por situações parecidas. Isso me ajudou muito. Agradeço a todos”, disse.  
​A​ neurologista Vanessa Van der Linden, que acompanha o menino, explica que as pessoas portadoras do TOD ​têm​ um comportamento contrário às ordens e orientações dos pais. “No caso de Renato, além do transtorno, ele ainda é um criança extremamente hiperativa e com alterações motoras. Então é muito complicado lidar com as crises que podem ser muito fortes”, ressaltou a especialista. Ela ainda analisou que o grau dos “escândalos” depende da idade da criança e do comprometimento gerado pelo transtorno. 
“Existem terapias que a criança deve fazer para lidar melhor com o transtorno, além do próprio acompanhamento com medicamentos. A família também deve ser orientada por psicólogas comportamentais sobre como lidar com cada momento de fúria, até porque não é saudável viver reclamando e repreendendo a criança”, concluiu a neurologista Vanessa Van der Linden. 
​DEDOS APONTADOS - ​Para o psicólogo e professor de Teorias Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Sylvio Ferreira, a situação vivenciada por Kiki, de ser julgada por estranhos, infelizmente é inevitável. “Faz parte da nossa condição humana estabelecer juízos avaliativos sobre comportamentos alheios. E esse julgamento é fragmentado, baseado apenas na situação vivenciada no momento, e não em sua totalidade. Inicialmente, as pessoas que estavam no shopping não sabiam dos problemas daquela criança. Mas ao ouvir a mãe, não tiveram sensatez e nem maturidade para compreender a situação”, explica o psicólogo, acrescentando que o fato de fazer um pré-julgamento não dá o direito às pessoas a agredir alguém. “E se o menino realmente fosse vítima de violência pela mãe? As pessoas naquele momento não poderiam ser omissas, deveriam tentar ajudar, mas sem agredir”, destacou.  
Apontar o dedo - ou o smartphone - para o outro nunca foi tão fácil
Apontar o dedo - ou o smartphone - para o outro nunca foi tão fácilIlustração: NE10
Sobre as ameaças de postar a foto da mãe nas redes sociais, Sylvio Ferreira avalia que a mídia estabeleceu novas relações entre as pessoas, mediadas pela imagem. “Muitos passaram a considerar que o maior castigo para alguém é ter sua imagem exposta na rede. O Facebook se transformou em uma praça pública, onde as pessoas são julgadas sem razoabilidade. Não se discute​m​ mais ideias, apenas condenações e absolvições”, argumenta.
CRIME – É importante lembrar aos “juízes do teclado” que expor alguém na internet e fazer acusações falsas é crime. “As leis estabelecem penas para os crimes contra a honra, de calúnia, injúria e difamação. E a internet muitas vezes é o meio usado pelo agressor para cometer esses delitos”, explica o delegado Joselito Amaral, diretor metropolitano na Polícia Civil de Pernambuco.
A pena prevista para o crime de calúnia é de seis meses a dois anos de detenção; de injúria é de três meses a um ano; e de difamação, de seis meses a um ano.  E quando alguém presencia um ato de violência contra uma criança? O delegado Joselito Amaral afirma que a melhor atitude para o cidadão que acredita estar diante de um crime em flagrante é chamar a polícia, não agir com as próprias mãos ou, no caso, com um smartphone​​. 

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