domingo, 10 de janeiro de 2016

Falta d’água, convite ao Aedes

Com carência no abastecimento, população é levada a armazenar líquido, sobretudo, no Interior


Caixas d’água e baldes destampados e até remendos em telhas oferecem facilidade suficiente para o mosquito transmissor se multiplicar
Na casa de Cristiane Xavier, de 33 anos, todos já tiveram a febre chikungunya. Aliás, em Pesqueira, no Agreste do Estado, onde ela vive, boa parte da população alega sofrer as dores nas articulações que caracterizam a doença, apesar de, oficialmente, só 28 casos terem sido notificados e apenas um confirmado. Os rastros da falta de controle do vetor - o mosquito Aedes aegypti - não são tão difíceis de encontrar. No caso da moradora, no próprio quintal, onde há uma grande cisterna aberta. “Ficamos de fazer essa laje depois, mas ainda não cobrimos. A gente só faz as coisas quando apanha”, reconhece Cristiane.
E a lógica é simples. Com a falta d’água, que chega a durar 21 dias, é fácil prever que armazená-la é prática comum por lá, assim como o descuido. Vários são os flagrantes de caixas d’água e baldes destampados. Mas jogar a culpa toda nas costas da população não resolve o problema. Cabe, sobretudo, ao poder público solucionar a questão por meio de medidas estruturantes.
Bruno Campos/Folha de Pernambuco
Em Pesqueira, casa de Cristiane tem cisterna sem tampa. “Todo mundo aqui adoeceu”
Uma delas é o próprio abastecimento de água, uma via-crúcis interminável para quem mora no Interior e piorada pelos últimos cinco anos de seca. Há cidades em que ela só chega por meio de caminhões-pipa em razão do colapso de reservatórios. Em outras, quase um mês de espera. Custa caro. Quando comparados com os quantitativos das doenças ou mesmo com os que indicam a presença do mosquito, os resultados são tão óbvios quanto preocupantes.
Em Santa Cruz do Capibaribe, onde o rodízio é de 28 dias, o Levantamento de Índice Rápido de Aedes aegypti (LIRAa) mais recente aponta 9,3 de infestação, o 13º maior do Estado. O mesmo tempo sem água também pode ser uma explicação para o índice de 11,9 obtido por Surubim, além das 381 notificações de dengue, outras de zika e confirmações de chikungunya. Outro terreno fértil para o transmissor é o município de João Alfredo, também no Agreste, que fica 11 dias sem água. O LIRAa local é de espantosos 17,9, o mais alto.
Em Glória do Goitá, que vem em seguida na lista, com 13, os males transmitidos pelo Aedes, principalmente, a chikungunya, têm subjugado tanto a população que tem gente até criando teorias novas. “É muito doente. É o mosquito mesmo? Será que isso pega no vento? Todos que vêm na minha casa adoecem. Meu marido, que tem 90 anos, quase morre. Meu quarto só vive com mosquito”, afirma Maria Gomes, 65, criticando o fato de agentes de saúde não passarem na rua. Lugar, aliás, que tem imóveis abandonados sem supervisão. “Eu já era preocupada e estou mais. A minha parte, eu faço”, declara a aposentada Josefa Leite, 71, que tem a frente de casa tomada por recipientes.
Arthur Mota/Folha de Pernambuco
Marco, de Olinda, diz que visitas de agentes para aplicação de larvicida são raras
RMR
No Grande Recife, a espera pela água nas torneiras é menor. Nas partes altas, dura, em geral, um ou dois dias. No bairro da Mangabeira, na Zona Norte da Capital, apontado como o de maior risco de adoecimento, considerando o coeficiente de incidência, há moradores que tentam fazer o dever de casa, como o aposentado Arnildo de Oliveira, 64, que precisa armazenar bastante água. Ele sabe que a missão de engajar todo mundo é dura. “Tenho uma caixa de mil litros e outro tonel de 200 litros, porque o abastecimento é dia sim e dia não. Estão sempre fechados e coloco areia nos vasos de planta. Mas com tudo isso, o mosquito ainda vem de todos os lados”, reclama o idoso, citando o estado da esposa, que contraiu chikungunya há um mês. “Ela ainda se queixa de muitas dores nas articulações e dos dedos inchados. Nem pode andar direito.”
    Em Olinda, o pedreiro Marco Silva, 44, tem a mesma preocupação, mas reclama da falta de apoio do poder público. “Água aqui só chega de 15 em 15 dias. Guardo o máximo possível em meu tonel de 250 litros. Tenho cuidado, mas a prefeitura não nos estimula nem orienta, ao menos para visitar as casas e colocar larvicida nos recipientes”, reclama.
    Jedson Nobre/Arquivo Folha
    Reservatórios são construídos, mas quando não chove entram em colapso e a população recorre a caminhões-pipa
    Medidas que não sejam paliativas
    Não descuidar de recipientes com água dentro de casa, onde estão entre 80% e 90% dos focos do mosquito Aedes aegypti, é básico e eficiente, mas não resolve tudo. Números do Ministério da Saúde endossam: sempre que houve uma grande epidemia de dengue, os anos seguintes foram de menos casos, reflexo do combate mais acirrado ao vetor. Tempos depois, ele volta a crescer nas sombras da negligência, volta a ser contido, volta a crescer...
    Sinal de que o que tem sido feito é paliativo. Na visão de especialistas, garantir o saneamento ambiental, no qual está contida a gestão do fornecimento de água, e conscientizar a população seriam um caminho para, mais que conseguir uma trégua do inseto, erradicá-lo.
    Para o consultor na área de energia João Bosco, o drama do desabastecimento, sobretudo, no Interior pernambucano, precisa ser levado mais a sério, o que demandaria pensar em soluções que não tivessem prazo de validade. É o caso, por exemplo, das barragens, parte delas secas após cinco anos de estiagem. “Elas ajudam, mas, quando chove pouco, entram em colapso. Faz tempo que a solução apontada é a transposição do Rio São Francisco, que, com esse período difícil, deveria ser alvo de um decreto do Governo Federal, tratando o assunto como emergência. São 70 municípios no Estado esperando pela água e a obra avança apenas dez, 15 km”, diz o especialista, acrescentando que, na Região Metropolitana do Recife, a questão está “razoavelmente resolvida”. “A exceção é a parte norte. Botafogo é um sistema precário, do ponto de vista da hidrologia”.
    Saneamento
    Mas não é só à necessidade de acumular água, aliada à falta de consciência do perigo, que é atribuído o problema. Saneamento ambiental inclui também a coleta e tratamento de esgoto. Além da gestão da água da chuva e dos rios, para que não fique empoçada. Também a gestão integrada dos resíduos sólidos, que ainda não está em cumprimento em muitos municípios; e o controle de vetores, como ratos, baratas, o próprio Aedes aegypti e outros causadores ou transmissores de doenças.
    Cenário que seria perfeito, se fosse real. A professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Soraya El-Deir, que atua na área de gestão ambiental, cita os quantitativos de saneamento por área para dar a dimensão do desafio. “Pernambuco é 35% saneado. O Recife, 20%. E o contraste é grande. Numa mesma cidade, há áreas com padrão de Suíça e outras com práticas semelhantes ao que era feito antes de Cristo. Porque isso não muda, se pagamos as taxas de água e esgoto? Falta decisão política de tornar esse problema uma prioridade”, problematiza.
    A professora também fala do que chama de “terceirização” de atribuições para o cidadão, que é orientado a eliminar potenciais criadouros dentro de casa, o que é correto, mas vê poças d’água e acúmulo de lixo na porta sem solução rápida e definitiva. “Talvez a menor responsabilidade seja da população, que, sem o treinamento devido, começa a armazenar água para suprir uma necessidade histórica. Nesse caso da universalização da água, existe muito o que fazer, por parte do poder público, e que é encoberto por essa ‘privatização’ de responsabilidades”, finaliza a especialista.

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